sábado, 15 de outubro de 2016

A Bélgica e seus lúpulos! - Por Doug Merlo

A Bélgica e o lúpulo, uma bela história mas muito controversa. Quem conhece um pouco da história da cerveja na Bélgica sem dúvida já ouviu a palavra “Gruyt”. Era uma mistura feita de ervas e condimentos que cada cervejeiro da idade média colocava na sua cerveja, fazendo com que a cerveja ganhasse gostos e aromas específicos e inconfundíveis além de prolongar a “vida degustativa”. Todas as cervejarias daquela época usavam o Gruyt, cada um na sua própria maneira, porque até então o lúpulo não era usado. Primeiro porque até o XI século não se conheciam profundamente as características organolépticas (que mais tarde foram reveladas perfeitas para a fabricação de cerveja); segundo, porque era proibido usar o lúpulo visto que os cervejeiros pagavam taxas pelo utilizo do Gruyt (lembrando que os monastérios eram isentos dessas taxas). A história entre a Bélgica e o lúpulo começa então justamente pela sua falta na cerveja mas que a partir do XVI século vira indispensável. E a partir de 1500 foi extinto a obrigação do uso do Gruyt em território belga, e cada cervejeiro começou a fazer cerveja como mais achava interessante.

E vocês pensam que na Bélgica não existia lúpulo cultivado naquela época? Existia e muito, ele era cultivado desde o século VII na cidade de Aalst, uma região das Fiandras Ocidentais Belgas. O cervejeiros flamingos começaram a utilizar o lúpulo sistematicamente, sendo ensinados pelos colegas cervejeiros alemães, que desde muito antes já utilizavam lúpulo nas próprias cervejas.

O progressivo aumento do utilizo do lúpulo fez com que a sua produção também aumentasse, e quando falamos de Bélgica esse aumento aconteceu sempre na cidade de Aalst-Poperinge, que no auge do seu período produtivo (1880) existiam 4185 hectares de plantação de lúpulo, hoje restam somente 180 que compreende uma produção anual de 365 toneladas de lúpulo de Northern Brewer, Challenger e Hallertau). Naquela época no período de colheita muitos trabalhadores rurais provenientes de outras regiões da Bélgica era assumidos para o empenhativo trabalho, que era feito manualmente até o final dos anos 50. Esses trabalhadores eram chamados de plukkers, que nas horas de intervalo dormiam em pallets forrados com palha dividindo o lugar com inteiras famílias de ciganos que se reuniam para o trabalho periódico, o pagamento era medíocre, poucos centavos por kilo de lúpulo colhido, os melhores colhedores conseguiam colher até 30-40kg por dia. Muito do lúpulo produzido era destinado para o mercado estrangeiro, tanto que muitas cervejarias alemãs, holandesas e inglesas compravam boa parte da produção de lúpulos belgas.

Mas voltando para o mercado belga, como utilizar todo o lúpulo que sobrava? Os cervejeiros não utilizavam para amargor, mas sim como estabilizante e conservante na cerveja fazendo com que a cerveja continuasse com uma forte estrutura maltada . Essa característica “doce” da cerveja ainda hoje prevalece na cultura cervejeira belga demonstrada em numerosos estilos. No amplo contexto da produção de cerveja na Bélgica não faltam ótimos exemplos de cervejas claramente lupuladas e amargas, que estão em forte crescimento tanto produtivo quanto de consumo. Esse cenário “lupulado” belga dividi-se em 2 capítulos: o primeiro é muito ligado a tradição, historicamente constituído por numerosas produções de excelência como Tripel, Belgian Ales e Saison, nas quais o uso equilibrado e elegante de lúpulos tradicionais (Saaz, Hallertau, Styrian) representam a perfeição clássica das produções belgas como por exemplo:

  • Westmalle Tripel
  • Chimay Tripel
  • St. Bernardus Tripel
  • De Dolle Dulle Teve
  • Dupont Moinette Blonde
  • Duvel
  • Westvleteren 8°
  • Witkap
  • De la Senne Taras Boulba e Zinnebier
  • Van Ecke Hommel Bier

Cada cerveja citada acima representa um exemplo clássico de lupulagem tradicional belga. O segundo e mais novo capítulo desse amor belga pelo lúpulo começou poucos anos atrás, identificado como um neologismo cervejeiro belga, as Belgian IPA. Nem todos reconhecem essa fragmentação do estilo IPA, Beeradvocate e BJCP reconhecem enquanto Ratebeer e BA, não. Mesmo com toda essa indefinição as Belgian IPA estão aumentando cada vez mais no território belga.

Mas o que são as Belgian IPA? Antes de tudo vocês precisam saber que ainda é um estilo em constante evolução, famosas sobretudo na Bélgica, mas também nos EUA e Itália. Inspirada nas IPAs americanas, são caracterizadas por usarem diferentes tipos de maltes e leveduras exclusivamente belgas mas com um utilizo parcial de lúpulos não europeus, preferencialmente americanos, que conferem um perfil aromático e gustativo frutado cítrico e resinoso.

Isso tudo começou com a Duvel Tripel Hop (Saaz, Styrian Goldings e Amarillo na primeira versão) e a La Chouffe Houblon (Tomahawk, Saaz e Amarillo), duas cervejas produzidas na Bélgica mas claramente pensadas para serem vendidas no mercado norte-americano, esses dois rótulos foram os primeiríssimos exemplos desse tipo de cerveja na Bélgica. Duas cervejas que abriram uma estrada, a Houblon que se transformou em uma cerveja de linha não somente para os EUA mas para toda a Europa e América (inclusive no Basil), e a Tripel Hop que é feita todos os anos sempre mudando o “terceiro lúpulo”. Apos o sucesso desses dois rótulos, outras cervejarias começaram a se aventurar nesse tipo de cerveja, como por exemplo:

  • Leyerth Urthell Hop It
  • Het Anker Gouden Carolus Hopsinjor
  • 't Smisje Belgian Double IPA
  • Alvinne Gaspar Ale e Extra Restyled
  • Contreras Valeir Extra (Sterling e Amarillo)
  • Troubadour Magma (Saaz e Simcoe)
  • Het Alternatief Truth
  • Struise Ignis e Et Flamma (Galena, Simcoe, Cascade, Chinook, Amarillo)

Temos também algumas produções não artesanais belgas, mas com resultados muito interessantes:

  • Lefebvre Hopus
  • Van Steenberge Over the Edge
  • Strubbe Brigand IPA

Tradição e inovação em uma nação que desde sempre esteve no cume da cena cervejeira mundial, com uma sabedoria produtiva disseminada durante os séculos. Nação que defende as próprias cervejas com marcas de qualidade reconhecidas em nível global.

Na Bélgica existem varias associações e marcas que tutelam alguns produtos, como por exemplo:

  • Belgian Family Brewers: selo que garante procedência familiar belga de pelo menos 50 anos no controle da cervejaria;
  • The International Trappist Association: Associação que regulamente e tutela cervejas trapistas e de Abadia
  • Cerveja de Abadia belga reconhecida: é um selo concedido pela União das Cervejarias Belgas, que identifica uma cerveja realmente feita em Abadias e supervisionadas pelos abades (não confundir com cervejarias trapistas)
  • Cerveja Belga da Valônia: um selo de reconhecimento e proteção para cervejas feita na região da Valônia na Bélgica, concedida pela Agência Valônia para a promoção de agricultura e qualidade (APAQ-W)
  • TSG: “Especialidade Tradicional Garantida”, selo que tutela o Lambic.

E obviamente não poderia faltar algo que protegesse e regulamentasse o uso de lúpulos belgas. Em 2010 foi criado o Belgische Hop, é uma marca registrada por cooperativa de produtores de lúpulo na região de Poperinge, que reconhece e tutela os lúpulos plantados e processados nessa região. Se um dia os leitores do Loucos por Belgas degustarem uma cerveja belga e no rótulo aparecer a logo da Balgische Hop, isso quer dizer que nessa cerveja é utilizado pelo menos 50% de lúpulo plantado em Poperinge. As primeiras oito cervejarias que aderiram essa iniciativa foram:

  • Jessenhofke
  • Van Honsebrouck
  • Den Tseut
  • De Plukker
  • Sint Bernardus
  • Den Triest
  • Antwerpse Brouw Campagnie
  • Seizoenbrouwerij Vandewalle

Hoje existem 58 produtores que podem ter o privilégio de usar a logo do Belgische Hop em algumas de suas cervejas, algumas cervejarias até mesmo fora da Bélgica.

Os tipos de lúpulos plantados na Bélgica:

  • Cascade
  • Fuggle
  • Goldings
  • Hallertauer Mittelfrühe
  • Saaz
  • Saphir
  • WGV
  • Admiral
  • Hallertauer Magnum
  • Merkur
  • Nugget
  • Pilgrim
  • Target
  • Brewers Gold
  • Challenger
  • First Gold
  • Marynka
  • Northern Brewer
  • Pioneer

O atual protagonismo do lupulo na Bélgica, fez com que a região da cidade de Poperinge investisse no “turismo cervejeiro” e criou o Hopmuseum (museu do lúpulo). Em uma atmosfera rústica e pretérita, o museu fica na velha casa de pesagem da cidade, onde antigamente se era pesado, controlado e estocado todo o lupulo produzido na cidade. Hoje os visitadores podem ver uma vasta coleção de antigos e atuais equipamentos que eram usados para a colheita, utilizando informações visuais e de auditivas, com uma impressionante interatividade as pessoas podem experimentar a historia e o ciclo vital do lupulo na Bélgica. Lembrando que os participantes da EXPEDIÇÃO CERVEJEIRABELGICA 2017 promovida por mim e o site o Caneco, vão visitar o museu em Abril.

Por Doug Merlo
Biersommelier Doemens Diplom
Italian Beertaster Diplom
BJCP Certified
Mixologist

2 comentários: